Não faltam histórias e aventuras nos sete anos passados a treinar fora de Portugal. Arábia Saudita, Turquia, Grécia, Alemanha e China, cinco países muito diferentes entre si e que deram a Vítor Pereira uma mundividência que antes não tinha. 

Na grande entrevista ao Maisfutebol, dada na Praia da Baía, em Espinho, a escassos metros da casa onde nasceu e viveu na infância, o treinador bicampeão pelo FC Porto solta o lado mais bem humorado e partilha algumas histórias incríveis. Histórias de um ganhador. 

PARTE I: «Pedi desculpa ao Jesus por lhe ter chamado egocêntrico»

PARTE II: «Tinha de parar, a adrenalina de ser treinador é uma droga»

PARTE IV: «3x4x3? As 'estruturas transformers' vieram para ficar»

PARTE V: «Estive duas vezes muito perto de clubes ingleses»

PARTE VI: «Na Alemanha desci à terra e percebi que não faço milagres»

Maisfutebol – Quais os jogadores que mais prazer teve em treinar?

Vítor Pereira– Não queria mencionar nenhum em particular, porque foram muitos mesmo. Mas apanhei atletas fabulosos, que me dão coisas incríveis e enriquecem os exercícios que proponho. Eu tento ajudar a descodificar as coisas, mas há jogadores que acrescentam coisas àquilo que eu proponho. Nesse golo do Kelvin eu estava a pedir para ele cruzar a bola, porque até o Mangala estava a aparecer na área. Eu pedi ao Kelvin para cruzar e ele espeta-me a bola dentro da baliza. Quem estava mal? Era o Kelvin ou eu? Eu, claro. Num exercício de treino é igual. ‘Também está bem’, com dizia o senhor Pedroto. Fui um futebolista de nível limitado e muitas vezes o que propomos é condicionado pela limitação que sentimos na altura como jogadores. Mas estes tipos são capazes de tudo, de fazer coisas que eu nunca consegui fazer como atleta. Dão-nos muito mais do que estamos à espera. Apanhei gente de qualidade extraordinária mesmo, que conseguem ler o jogo perfeitamente dentro do campo, a jogar. Há tipos que veem mais a jogar do que eu de fora. E eu não lhes posso dizer ‘não faças isso porque não foi treinado por nós’. É aí que tem de entrar a liberdade.

MF – O Vítor era lateral direito quando jogava, certo?

VP – Não, passei por quase todas as posições e ainda bem. Fui lateral direito na formação, passei depois para extremo direito, ponta-de-lança móvel, médio centro e acabei como defesa central. Vivenciar tudo isto foi fundamental, tornei-me muito mais completo. Quando passei do meio-campo para central para mim foi brincadeira. Ver o jogo diferente? Que maravilha. O contrário é que é complicado. Jogar nessas posições deu-me pormenores importantes para agora poder ensinar.

MF – Destes anos todos no estrangeiro deve ter boas histórias para contar.

VP – Posso começar por uma da Turquia. Em Istambul eu vivia na parte europeia e ia trabalhar todos os dias para a parte asiática. Eu vivia perto do estádio do Galatasaray. Só havia uma ponte para atravessar para a outra parte e aquilo era um caos. Todas as ruas iam lá desembocar. Para chegar ao treino era um problema. Uma hora e meia para um lado, uma hora e meia para o outro. Às vezes mais. Falei com o presidente. ‘Adoro a minha casa, mas não posso viver ali, é muito desgastante’. E ele disse-me que ia resolver o problema. Passados uns dias chega à minha beira com um cartão. ‘Estás a ver isto? A partir de agora podes andar na berma da estrada, entre os rails e os outros carros. Assim não tens de esperar nas filas’. Pensei que ia ser multado, mas ele garantiu-me que com aquele cartão não havia problema. E lá fui eu.

MF – Portanto, ultrapassava aquela gente toda pela berma.

VP – A medo, mas sim. Ultrapassava. Alguns não gostavam e davam guinadas, uma vez dei cabo do carro nos rails. Bem, certo dia a polícia mandou-me parar. Eu mostrava a placa, viam o nome Pereira e mandavam-me seguir. Um dia um polícia estava com má cara, mas percebeu que eu era o treinador do Fenerbahce. Ficou tão contente que me pôs a falar com a namorada dele ao telefone, disse-me que a namorada queria ir ao centro de estágio ir ter comigo, uma maluqueira. Com esse cartão passei por cada uma…

MF – E o que dizia o cartão?

VP – Nunca soube, até hoje (risos). Só sei que tinha o meu nome.

MF – Na China teve alguma experiência mais exótica?

VP – Podemos acabar com essa. Fui a um restaurante com estrela Michelin, com o presidente do clube, e comemos bem. Com os pauzinhos é sempre a tirar. ‘Agora vais comer uma coisa que é muito cara, uma especialidade’. Eu até estava a gostar. E veio uma bandeja enorme com uma coisa enorme em cima, a fumegar. Um aspeto estranho. Começaram a cortar, puseram-me no prato e lá experimentei. Para eles é uma falta de respeito não comer. Era uma coisa esponjosa, estranha. Perguntei ao tradutor o que era e ele não me soube explicar. Pesquisou na internet e mostrou-me a imagem.

MF – O que era?

VP – Uma lesma. Eles lá dizem que aquilo faz muito bem à pele (risos). E lá comi lesma.