1- Há muitos, muitos anos - mais de 150 - alguns senhores com responsabilidades políticas e escolares perceberam as enormes vantagens de uniformizar e difundir uma série de práticas físicas, até aí apenas lúdicas e festivas. Dessa forma, estavam a estimular a organização e a disciplina, definindo metas e objetivos que os jovens aceitavam sem protesto. Em tempo de guerra, era uma excelente preparação para as exigências militares. Em tempo de paz, permitia canalizar a agressividade para atividades codificadas por regras, diminuindo o risco de violência e de conflitos sociais. Em todos os tempos, a juventude em formação ganhava referências, que lhe permitiriam crescer de forma mais saudável e ativa. E, resumidamente, foi assim que dos jogos de rua nasceu um novo fenómeno chamado desporto.

2- Aproveitando a industrialização, o crescimento dos transportes e dos meios de comunicação, o fenómeno expandiu-se. Saltou os muros dos colégios, universidades e quarteis. Através dos portos e do caminho de ferro alastrou às fábricas e aos centros de comércio. A concorrência e a competitividade eram estimuladas pela crescente facilidade das viagens. As provas organizadas, em sistema de taça ou de campeonato, passavam a enquadrar o fenómeno. Primeiro as cidades, depois os bairros, começaram a organizar-se por cores e estandartes. Refletindo as suas origens, bairristas ou cosmopolitas, elitistas ou proletários, os clubes e associações tornavam-se as células vitais do fenómeno desportivo.

3- Acontece que o entusiasmo gerado pelos eventos desportivos extravasou o universo dos praticantes. Permitindo-lhes canalizar ambições e frustrações da vida «lá fora», o efeito catártico que os jogos provocavam nos seus espectadores tinha, mais uma vez, consequências importantes na imposição e manutenção de uma ordem. A saúde competitiva dos clubes passou a ser vista como símbolo da força - ou fraqueza - da região. E o que já tinha sido percebido pelos diretores dos colégios, numa primeira fase, estendeu-se aos detentores do poder económico, primeiro, e aos próprios Estados, depois. Independentemente das suas origens e das histórias particulares, os clubes tornaram-se objetivamente aliados importantes do statu quo.

4- Em paralelo, a paixão pelo fenómeno desportivo rapidamente se traduziu em potencial de receita. Primeiro na venda dos bilhetes, depois em indústrias complementares como a dos equipamentos e acessórios, ou a da comunicação social, que ajudou a disseminar a febre enquanto criava novos mercados para si própria. Por essa altura, os clubes, que tinham começado por ser organizações para proporcionar prática desportiva aos jovens das redondezas, estavam estratificados por uma série de critérios. O mais importante deles, a capacidade de gerar receitas e angariar novos adeptos – com o sucesso desportivo como consequência, numa inversão dos termos da ordem original. Com o esbater das barreiras geográficas, sucesso, no caso, passou a significar também a necessidade de absorver, enfraquecer e aniquilar a concorrência nas proximidades – e a ideia de «proximidade» já se estendeu do bairro à cidade e da cidade ao país. Esse é o ponto exacto em que estamos. O ponto em que o clubismo azeda e dá origem à clubite. O ponto em que o leque de escolhas parece cada vez mais restrito. O ponto em que o bolo tem cada vez menos fatias, e onde o insucesso do outro é tão ou mais importante que o nosso sucesso.

5- Pode escolher-se um clube por centenas de razões. Por herança familiar. Por revolta contra a família. Por snobismo. Por proximidade geográfica. Por afinidade com as cores, ou o emblema. Pela admiração por um ídolo. Por exclusão de partes. Ou, simplesmente, para se ter companhia. Mas quem o faz, qualquer que seja a razão, está a dar sequência a esta história com mais de 150 anos. Escolher clube – ou escolher não o escolher - é o nosso pequeno contributo, a nossa pincelada neste gigantesco mural onde diariamente convivem generosidade e egoísmo, lucidez e estupidez, paixão e desonestidade. Não é o clube que escolhemos que nos define, mas o que desejamos para ele, o que esperamos vê-lo fazer, e como. Haja ou não consciência disso, essa é a escolha que reflete o que somos. E o que queremos fazer da vida «lá fora».