Uma das crónicas com que o jornalista Mário Filho fixou os primeiros mitos, lendas e gigantes do futebol brasileiro era sobre o guarda-redes Marcos de Mendonça, conhecido como o «Fitinha Roxa». Pioneiro na visão científica do posto, o arqueiro do Fluminense e da seleção do Brasil, entre 1914 e 1922, foi o primeiro a elaborar a teoria de que os remates eram um problema geométrico a que os guarda-redes tinham de responder com posicionamento.

Um guarda-redes bem colocado, garantia Marcos, teria sempre cobertos os ângulos de entrada da bola. Por isso, tanto os golos como os voos espectaculares para defesas de recurso eram acidentes do jogo, provocados por uma de duas causas: ou um erro de leitura do guarda-redes, ou um remate falhado pelo atacante. Rezam mais crónicas que Marcos de Mendonça fazia questão de casar teoria e prática. Elegante, sóbrio de movimentos, detestava ter de ir ao chão. E nunca deixava de apontar os erros técnicos aos avançados que tinham o azar de lhe marcar golo.

Marcos de Mendonça

Os cem anos que se seguiram na história do futebol limaram o lado excêntrico e folclórico da teoria. Com as palavras de Marcos, ou outras parecidas, a evolução do jogo confirmou o lado geométrico da função. E, dando-lhe razão, fez rarear até ao limite da avareza a frequência dos «acidentes» - tanto dos golos como das defesas de recurso.

Mais do que isso: a noção geométrica do trabalho defensivo alastrou a outros setores, conquistou terreno e afastou-se decididamente das áreas. Como efeito prático, o guarda-redes foi deixando, pouco a pouco, de ser o super-herói que voava para travar os maus. Transformou-se numa espécie de tecnocrata dos 16 metros, condenado a recolher com os pés atrasos dos companheiros, e uma ou outra bola moribunda de um remate espirrado. A sua ação é agora, em muitos jogos, uma espécie de recurso para o Supremo: pontual e só aceitável depois de esgotadas todas as outras instâncias. E é difícil não imaginar que este cenário agradaria a Marcos de Mendonça – um aristocrata que, depois das balizas, se tornou escritor, historiador e presidente do Fluminense.

Há mais de 30 anos, numa expressão feliz, entre muitas da sua autoria, Carlos Pinhão alertava para os riscos de resumirmos a nossa visão do futebol a uma «pornografia do golo» com tudo resumido ao momento de penetração na baliza. Também tinha razão: a forma como passámos a consumir futebol, em clips apressados de golos e polémicas onde fingimos contar a história toda, também retirou carga mítica à função. A ponto de legitimar a adaptação de uma pergunta feita em tempos a Gary Neville: será que os miúdos ainda sonham ser guarda-redes quando crescerem?

Mas, sim, a resposta ainda é afirmativa. Embora pareça, esta não é uma crónica cem por cento nostálgica dos tempos em que os remates de 30 metros brotavam das chuteiras como cogumelos e os guarda-redes nunca tiravam as capas de super-herói. E não o é porque esta foi uma semana invulgarmente boa para quem gosta de ver guarda-redes em ação. Bastariam as defesas de Cech diante de Silva e Jovetic, no Etihad. . .



ou o milagre de Neuer no um para um com Drmic, em Nuremberga, imediatamente antes do 1-0 para o Bayern. E, ainda, novamente Cech, em casa, a evitar que o Newcastle chegasse ao empate, um minuto antes de Hazard partir a loiça toda. Ou, por fim, esta fantástica dupla defesa de Valdés, no Sanchez Pizjuán, evitando o 2-2 para o Sevilha numa fase crucial do jogo...



... para termos a certeza de que sim. São mais raras, mas existem, as provas de que não sonhámos: existiu mesmo mesmo um tempos em que os guarda-redes eram gloriosos malucos, feitos máquinas voadoras. E, surpresa, ainda aí andam, talvez disfarçados, talvez engravatados por anos a estudar catetos, senos, cossenos e saídas a soco. Mas lá atrás, no fundo das redes onde pousam a toalha, a garrafa de água e os amuletos, talvez tenham ainda, junto ao manual de geometria avançada, a capa que em tempos os fazia voar tão longe quanto a nossa imaginação permitia.