Duvido que alguma expressão me mexa tanto com os nervos como o famoso «arco da governabilidade». Mas há uma que, no contexto do futebol português consegue chegar lá perto: é a não menos famosa «verdade desportiva».

Não me interpretem mal: considero a ética uma obrigação moral, e o jogo limpo o primeiro fundamento de toda a competição. Dito isto, poucas coisas me irritam tanto como a apropriação, por parte de grandes cabeças, de qualquer tipo de bússola moral. Nos últimos tempos, essa apropriação escondeu-se por detrás de uma expressão tão oca e genérica como a «paz universal» das candidatas a Miss.

Também me irrita essa variante de entomologia que se dedica a classificar verdades em função do aspecto exterior. Uma «verdade intelectual», que usa óculos e fuma Gitanes, uma «verdade cinematográfica», cheia de efeitos especiais, e uma «verdade desportiva» que deve ser uma verdade em calções. E existe, deduzo, por oposição a um certo tipo de mentira, a «mentira desportiva», que mostra a cabeça sempre que a verdade desportiva falha.

Aqui começam os problemas, porque falha muitas vezes. O futebol, como a vida, não é feito apenas de verdade: tem omissões gritantes, distorções grosseiras, meias verdade e até mentiras completas - que são quase tão raras como as verdades absolutas, mas mais frequentes do que unicórnios azuis.

Se quisermos exemplos concretos, podemos começar pelo óbvio: Maradona. Aquele que é, para mim, o melhor jogador de todos os tempos cimentou a sua lenda à custa de um golo com a mão, de que toda a gente se lembra. Mas também de dois foras-de-jogo escandalosamente mal assinalados à seleção da Bélgica na meia-final desse Mundial 86, que já ninguém se dá ao trabalho de recordar. 

Se a isto juntarmos um Mundial de 1978 ganho com a participação ativa de uma ditadura militar e de uma goleada ao Peru que transformou a palavra «suspeição» em eufemismo podemos, à luz da verdade desportiva, fazer um traço negro sobre os momentos dourados da Argentina em Campeonatos do Mundo. Estaremos dispostos a isso? Se formos coerentes, sim, mas teremos de levar também com ela as memórias do Brasil campeão em 2002, com enorme ajuda de más decisões de arbitragem noutro já esquecido jogo com a Bélgica. E este caminho leva-nos muito rapidamente à eliminação de quase todos os campeões do Mundo - ou à constatação, amarga, de que a história dos Mundiais é um hino à mentira.

Outro exemplo, um pouco menos óbvio: aquela que foi, para mim, uma das equipas mais importantes da história do futebol, o Ajax, construiu a sua fama, nos anos 70, à custa do génio tático de Rinus Michels e do talento futebolístico de Johann Cruijff. Mas, também, em grande parte, à custa de uma preparação físico-química revolucionária para a época, assente nos conhecimentos do seu médico, John Rolink, que instituiu o uso generalizado de pílulas dopantes. Muitos elementos dessa equipa reconheceram-no publicamente nos últimos anos, mas nem isso me faz retirar o Ajax do pedestal onde a história do futebol o pôs – ao arrepio da «Verdade Desportiva» com aspas e maiúscula.

Lamento, mas acredito mesmo que todas as  vitórias marcantes do nosso clube, ou da nossa seleção, todas as  memórias afetivas que nos são gratas podem ter – e têm quase sempre - um outro lado, contado pelos vencidos. Que nos desagrada e com o qual não queremos ser confrontados.  Um lado que dribla por completo a «verdade desportiva», assim mesmo, como é dita pelas grandes cabeças, com pronúncia solene.

A arrogância de presumir a existência de uma «verdade desportiva» única, objetiva e incontornável, esconde apenas, invariavelmente, o interesse de impor a nossa como superior às outras. Porque, a «verdade desportiva», como os outros tipos de verdade, é uma construção artificial, escrita pela memória seletiva dos vencedores, pela falta de memória dos vencidos, e imposta como definitiva por quem tem poder. Por isso, além de elitista, moralista e arrogante, a «verdade desportiva» das grandes cabeças é também um bocadinho mentirosa.