Alguns países erguem cenotáfios em honra do Soldado Desconhecido. Eu defendo que os adeptos de futebol deveriam fazer um monumento do género ao Cabeceador Anónimo: o primeiro homem que, há coisa de 130 anos, honrando as raízes medievais do futebol, fechou os olhos, benzeu-se e usou a cabeça para desviar uma bola rumo à baliza.

Se acham exagero provavelmente não estão a ver bem o filme: as primeiras bolas de futebol, com peso a rondar o meio quilo, absorviam água em quantidades industriais. O seu impacto, e o efeito deste nas vértebras, era superior ao que qualquer cabeça saudável deveria suportar: imaginem cabecear uma bola medicinal, e não andarão muito longe. Para agravar o problema, o único sistema para fechar o invólucro de couro em redor da borracha vulcanizada eram uns cordões, grossos e resistentes, que faziam muito mais do que comprometer a esfericidade da bola.

Os remates das costuras, muito salientes, não só davam origem a remates de geometria variável - e alguns frangos hilariantes, à luz dos padrões atuais – como, em contacto brusco com uma testa desprevenida, eram perfeitamente capazes de abrir sobrolhos e deixar cicatrizes. A coragem física, que as crónicas da época associam por sistema a defesas e avançados-centro, não era força de expressão: golo de cabeça era proeza destinada a valentes, ou inconscientes - antes ou depois do cabeceamento. Não era por acaso, ou por vaidade, que várias fotos de equipas até aos anos 30 nos mostravam jogadores com gorro, touca, ligaduras ou outro tipo de proteção para a cabeça.

Foi então que em Bell Ville, pequena cidade argentina da província de Córdoba, três negociantes com costela de inventores, sócios da empresa «Tossolini, Valbonesi, Polo & C.ia» decidiram patentear, em 1931, uma nova bola, sem costuras exteriores, e com esfericidade garantida. Chamaram-lhe Superball e, embora nesse tempo as campanhas de marketing não funcionassem com a rapidez dos nossos dias – em rigor a palavra marketing nem sequer tinha sido inventada – a fama da nova bola não demorou espalhar-se por toda a Argentina e, logo depois, a atravessar o Atlântico rumo à Europa.

Em 1934, a Federação italiana, que em junho ia organizar o Campeonato do Mundo, encomendou 12 exemplares da bola argentina, a melhor amiga dos cabeceadores. Em 1936, o fabrico foi replicado na Alemanha, para os Jogos Olímpicos de Berlim. De repente, passou a ser possível fazer coisas impensáveis com a cabeça e uma bola de futebol. E os progressos na qualidade de jogo foram tão evidentes que, mesmo com a II Grande Guerra pelo meio, a indústria de equipamento desportivo nunca mais parou de investir na evolução das bolas – e, indiretamente, no aumento da frequência de golos de cabeça: de apenas seis no primeiro Mundial, em 1930, passámos para os 16 do Mundial 54, e para o recorde de 37 no Mundial 2002, onde quase um quarto do total de golos veio dos ares.

Foi nesse Mundial que o mexicano Jared Borghetti assinou uma das cabeçadas mais bonitas, entre os 320 golos de cabeça na História da competição:


Só depois da bola sem cordões vieram os números nas camisolas, as chuteiras com pitons, as luvas de guarda-redes, as substituições, as bolas impermeáveis, as bebidas energéticas e todas as pequenas conquistas que ajudaram a fazer do futebol aquilo que conhecemos hoje. Mas foi a partir da criação argentina que se tornaram possíveis poemas épicos como este, de Cristiano Ronaldo:



Foram as fanfarras e o entusiasmo generalizado, algo pueril, pela chegada ao Mundial do GoalControl, o sistema para evitar golos fantasma, que me fizeram dedicar esta vénia silenciosa aos verdadeiros pioneiros da tecnologia em Campeonatos do Mundo. Senhores Romano Polo, Antonio Tossolini e Juan Valbonesi, cheguem-se à frente e recolham os aplausos: todo e qualquer apreciador de golos de cabeça tem uma dívida eterna para convosco. Mesmo que, com toda a probabilidade, não o saiba.